quarta-feira, 15 de setembro de 2010

PEGOU NO TRANCO

Estaciono o carro na ladeira, pronto para descer. Em frente às duas igrejas. A casa continua lá, ainda pintada nas mesmas cores. Desço e coloco os óculos escuros. A casa está fechada, disseram-me que os proprietários estão viajando. A chuvarada passou de repente e saiu um belo sol contra o céu azul.

No portão dos fundos, de dentro do terreno, um garoto me observa curioso. Deve ter pulado a cerca para roubar butiá, da para ver daqui que tem um cacho amadurecendo. Vou descendo a ladeira com cuidado para não escorregar no terreno enlameado.

O poço novo esta lá, atrás do balanço, no qual o garoto agora se diverte. Disseram-me que o poço velho foi aterrado. Contorno a esquina bem devagar, as hortênsias estão floridas, quase alcançando o corrimão da varanda. O garoto vem correndo e abre o portão da frente. Do bolso traseiro pende o elástico de uma atiradeira – que lá chamam de cetra – os bolsos estão estufados de pedras e butiás quase maduros.

A chuva que caiu torrencial trouxe das colinas a água que corre pelas valas na lateral da rua. A água é limpa, muito limpa. A vala é cortada em uma argila rija amarela. O garoto molda grandes nacos de argila e com eles vai ligando pedras e cacos de tijolos formando uma pequena barragem. Ele faz naquilo bem feito.

A casa está realmente toda fechada. Arrisco entrar. Passo vagarosamente entre os canteiros cercados por tijolos. Caminho até o pé de butiá e colho alguns maduros. O gosto característico já meio esquecido estimula o paladar e a memória. Sento um pouco no balanço. Olho os grandes eucaliptos do Grupo Escolar. O Grupo está fechado, é mês de férias. Contorno a casa. Do outro lado nem sinal do poço velho. Realmente foi fechado. A árvore está lá, linda e frondosa como sempre. Amiga e acolhedora.

O garoto aparece e me olha cúmplice. Pula, agarra um galho mais baixo, balança o corpo, apóia o pé numa forquilha e sobe. Num instante alcança galhos mais altos.

A árvore agora está mais alta que a casa. Imito o garoto e subo também. O mocassim novo, já sujo de lama, recebe mais uma cicatriz. Procuro um galho confortável. As sementes nascem em cachos que brotam dos galhos. Arranco um e começo a girar a bolinha dura e verde escura entre meus dedos. O garoto lá em cima mexe-se e olha-me reprovador. Aquelas bolinhas devem ser venenosas. Aquilo é uma arvore de bolinhas. Vou desfazendo o cacho e atirando uma a uma as sementes no terreno baldio vizinho.

Desço da árvore e vou andando em direção ao portão. Nuvens escuras aparecem lá para o lado do chovedor e anunciam que vem mais água por aí. Caminho lentamente para o lado do Grupo Escolar. As janelas estão fechadas. Nas paredes claras algumas manchas da cor da argila da vala. Em alguns dos retângulos da janela o vidro fino está quebrado. É sempre um pequeno orifício, redondo e bem recortado.

O garoto está ao meu lado e olha com um sorriso maroto. O povoado esta deserto, ninguém na rua. Como se adivinhasse meu pensamento, ele me estende a cetra e um butiá verde. Meu tiro sai certeiro, e abre um pequeno orifício, redondo e bem recortado na janela do Grupo.

Na valeta o tanque do garoto ficou pronto. Por um pequeno vertedouro no topo, a água escorre e move uma pequena roda de madeira, como se fosse um moinho.

Começa a chover de novo. Dirijo-me lentamente para o carro. Lá atrás, antes de desaparecer no terreno baldio, o garoto acena sorridente e faz um sinal de positivo com o polegar para o alto.

Subo no carro, solto o freio de mão, olho mais uma vez para a casa e vou descendo lentamente a ladeira. Como se não quisesse acordar as pessoas naquele sonho. Lembro que ainda estou de óculos escuros. Tiro os óculos, enxugo as lágrimas, engreno uma segunda e a vida pega de novo, no tranco...

Jose Carlos Filizola

Morro Azul, 13 de outubro de 2001

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